sexta-feira, 23 de maio de 2025

SEBASTIÃO SALGADO


 



                                                                           1944 - 2025

quinta-feira, 22 de maio de 2025

LOVE

 LOVE bade me welcome; yet my soul drew back,

            Guilty of dust and sin.
But quick-eyed Love, observing me grow slack
    From my first entrance in,
Drew nearer to me, sweetly questioning
            If I lack’d anything.

‘A guest,’ I answer’d, ‘worthy to be here:’
            Love said, ‘You shall be he.’
‘I, the unkind, ungrateful? Ah, my dear,
            I cannot look on Thee.’
Love took my hand and smiling did reply,
            ‘Who made the eyes but I?’

‘Truth, Lord; but I have marr’d them: let my shame
            Go where it doth deserve.’
‘And know you not,’ says Love, ‘Who bore the blame?’
            ‘My dear, then I will serve.’
‘You must sit down,’ says Love, ‘and taste my meat.’
            So I did sit and eat.


George Herbert    (1593 - 1632)

segunda-feira, 12 de maio de 2025

LEMBRA-TE

 Décimo segundo dia do quinto mês de dois mil e vinte cinco.

Não te afastes do propósito da luz, repousa na sombra dela, refresca-te nos beijos que foram, serão e por isso são.
Deixa que te afague os dias com a ponta dos meus dedos e que mergulhe a cara na densidade da tua pele. És primavera no outono e verão em pleno inverno, o sol quente do meu Norte, a brisa fresca do meu Sul. Todos os pontos cardeais rodam nesta bússola de sentir com rumo a nós. Os rios correm até à foz da nossa existência com a urgência da cascata, com a força das maiores correntes.
Se te afastares, recorda-me na sequência dos ocasos, a cada aurora, como no abrir de asas das gaivotas que se perfilam até mim, até ao pouso, até ao abraço de quem fomos e por isso somos.

domingo, 11 de maio de 2025

A VERGONHA ABSOLUTA

 




"A vergonha absoluta" - José Pacheco Pereira in "Público" de 10/05/2025
"Acho que nunca escrevi um artigo em estado de maior indignação. O que se passa em Gaza e no território da Autoridade Palestiniana convoca não só a política, a geopolítica, as relações de forças entre Estados, o mundo do “Ocidente” e do Oriente, todos os conflitos em curso, o “Sul global”, o papel das Nações Unidas, mesmo o direito internacional, convoca tudo o que quiserem, mas tudo está abaixo de um repto moral, de uma obrigação de falar, de um dever de protestar e actuar perante um massacre cruel, diante dos nossos olhos, de um povo, o palestiniano. Só conheço uma comparação para esta indiferença, vergonhosa e também, ao mesmo tempo, a mais certeira e, num certo sentido, a mais diabólica: o encolher de ombros de todos os que sabiam que o Holocausto estava em curso – e havia muitos altos responsáveis entre os inimigos dos alemães que sabiam – e nada fizeram.
E não me venham com a história do anti-semitismo, que é um argumento insultuoso para justificar os crimes de Israel, da mesma natureza que o canto “desde o rio até ao mar” serve para justificar o massacre do Hamas. Estão bem uns para os outros.
Já sabemos que tudo começou com um massacre perpetrado pelo Hamas e que devia ter uma resposta israelita dura, como teve. Mas o que se passa nos dias de hoje é outra coisa, é outro patamar político, racial, nacional, que nada tem a ver com uma resposta com qualquer racionalidade militar para combater o Hamas. É uma política de destruição em massa de um povo e do seu “lugar”, e conheceu mais um agravamento na semana passada, com o anúncio da anexação de mais uma parte do território de Gaza ao Estado de Israel. Trata-se, certamente, de preparar a “Riviera” que um Presidente demente diz querer fazer. Bastava esta declaração de Trump, com a aquiescência cínica e interesseira de Bibi, para nós percebermos o grau de loucura que está à frente da maior potência mundial.
Ah! Sim, muita gente diz-se preocupada todas as vezes que Trump abre a boca, ou move as mãos para fazer aquela assinatura infantil em mais uma ordem executiva à margem da Constituição e dos poderes do Congresso, mas isso não chega. Em particular, não chega para a hipocrisia moral de muitos países da União Europeia, como Portugal, que nem sequer o passo de reconhecer o Estado palestiniano são capazes de dar. É uma atitude quixotesca? Se for levada a sério, com a instalação de embaixadas no novo Estado, a assinatura de acordos económicos, políticos e militares, com um Estado soberano, então a coisa fia mais fino. Acresce que Israel, violando todas as regras do direito internacional, conduzindo um massacre quotidiano, não tem sanções.
No entretanto, todos os dias se mata gente inocente, crianças, mulheres, velhos, sem sequer qualquer racionalidade militar que não seja destruir, matar ou atirar para fora da sua terra milhões de pessoas, para depois terraplanar as ruínas e lá instalar colonos israelitas, os mesmos que andam também a matar palestinianos nas terras da Autoridade Palestiniana, a base eleitoral dos partidos da extrema-direita que estão no governo de Bibi. Quem acredita que o que Bibi quer é dar a Trump os hotéis de luxo e as praias da costa de Gaza para fazer vários Mar-a-Lago, e que alguma vez alguém vai lá por o seu rico dinheiro para fazer uma estância turística, rodeada, por terra, por três muros e um pequeno exército de segurança e, por mar, por patrulhas em lanchas, está tão demente como Trump. Não é o caso de Bibi que quer outras coisas, todas locais, todas no Médio Oriente, todas culminando num ataque ao Irão. Para isso, ele até é capaz de construir a tal Riviera vazia de gente, como as aldeias Potemkin em cartão, deslocadas de quarteirão em quarteirão, para a glória de Trump e depois, conseguindo o que quer, trazer o seu eleitorado de extrema-direita para tomar banho na sua Riviera.
E, já agora, não convinha perguntar, em plenas eleições, algo de verdadeiramente importante ao PS, ao PSD, ao CDS, ao Chega, por aí adiante, se, chegando ao Governo, estão dispostos a reconhecer o Estado palestiniano, estão dispostos a impor sanções a Israel e a usar todos os meios ao dispor de um Estado da União Europeia para punir os criminosos? E, para além disso, o que é que eles acham do que se está a passar com as crueldades de Israel em Gaza?
As respostas seriam até uma razão bem mais sólida e moral para decidir o voto."
s

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O MEU TEMPO PREFERIDO



Décimo sexto dia do quarto mês de dois mil e vinte cinco.
Este é o mês preferido do ano preferido porque é neles que estou. Não há dia em que não festeje a liberdade ou que não me debata pela falta dela. Voltei a ver notícias e nem lamento não estar surpresa pela desesperança instalada no planeta, no entanto, e cada vez mais, tenho mais esperança em cada um de nós, no contágio das coisas boas e na expansão dos corações amorosos. Tenho dado espaço à doçura que habita em mim desde sempre e tenho-a deixado fermentar lentamente à temperatura do meu peito. Sou a prova viva de que é possível ser paz em tempos de guerra, ser cómica em dias tristes, ser mentira perante a violenta verdade da agressão, seja ela de que natureza for. Muitas vezes dou por mim a rir à gargalhada quando ouço comentários simpáticos sobre qualquer agressor:
- Tão educado!
- Muito bem disposta!
- Oferece-nos sempre o café.
- Todas as semanas nos oferecia ovos.
- É tão asseada.
- Sempre com uma palavra gentil.
Só podendo usar os meus exemplos que foram mais do que desejaria para alguém, gostaria de reforçar que é sempre assim. Só dentro do seu ambiente é que se revelam. Seja por estar um objeto fora do lugar pretendido, por falares com alguém tempo demais, por olhares para outra pessoa, ou por expressares a tua opinião contrária à dele. Marcas físicas atrozes, em mim, só em 1988, quando uma vassoura pousou nas mãos dum namorado da altura e despencou nas minhas costas. O rapaz era tímido e educado mas não estava contente porque eu ia para Montreal durante três meses. Resolveu expressar a sua indignação na véspera da partida, no meio duma festa de carnaval, enquanto conversávamos no jardim. Para me proteger só tive tempo para me fechar em concha sobre um arbusto. A vassoura tinha um cabo de madeira e perdi a conta das vezes que bateu nas minhas costas. Pela primeira vez na vida não contei nem à minha mãe o que me tinha acontecido. No avião fui sentada na beira da cadeira sem nunca me encostar. Cheguei a Montreal e tinha o meu amigo Marcel à espera. A namorada dele era socióloga e trabalhava num centro de socorro a mulheres espancadas. Depois de ver a peça de teatro que as crianças tinham preparado para mim, chamei-os à parte e contei. Pela primeira vez vi o tamanho das minhas dores quando as mostraram ao espelho. Vergões vermelhos,roxos e negros da nuca até à base da coluna. Dez, quinze, sei lá. Uma mão cheia de amigos cuidaram de mim e foram o maior bálsamo que poderia ter para qualquer dor ou ferida.
Falei com a mãe ao telefone. Lembrei-lhe duma conversa que costumávamos ter em que ela me dizia que a falta de amor tem consequências físicas, para eu não levar a mal, mas para me retirar a tempo.
Foi o que fiz, mamã.
É o que faço, meu amor.
Aprendi com o tempo que serei sempre uma presa fácil se não me retirar a tempo. Aprendi também a ler a agressividade antes dela acontecer. Aprendi as medidas de antecipação e o tamanho da minha fragilidade. Aprendi que a agressão psicológica é muito maior do que qualquer vassourada. Aprendi e continuo a aprender que o silêncio e o isolamento são os nossos maiores inimigos. Aprendi que os amigos não merecem ser os nossos terapeutas porque nos amam e por isso temos que procurar ajuda técnica para nos curarmos.
Aprendi que nunca perco a esperança, que adoro a natureza humana no seu melhor e que a desprezo no seu pior. Continuo a aprender que não há dor que deva ser ignorada, nem amor que deva ser calado.
E, só agora, estou a aprender a amar-me.

Elsa Bettencourt
 

 

segunda-feira, 14 de abril de 2025

CARLOS MATOS GOMES/ CARLOS VALE FERRAZ

 




Faleceu Carlos Matos Gomes, capitão de Abril, aos 78 anos, em Lisboa.
Nasceu em Vila Nova da Barquinha, em 1946, fez os seus estudos no Colégio Nun'Álvares, em Tomar, onde conheceria Salgueiro Maia. Coronel do Exército, cumpriu três comissões na guerra colonial (Moçambique, Angola e Guiné), nas tropas especiais «comandos». Fez parte da primeira comissão coordenadora do Movimento dos Capitães, na Guiné. Pertenceu à Assembleia do MFA durante o ano de 1975.
Investigador de História Contemporânea de Portugal, publicou dezenas de títulos em nome próprio e em coautoria com Aniceto Afonso Guerra Colonial, entre outros. Sob o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz, publicou dezenas de romances, tendo sido Prémio Literário Fernando Namora em 2018.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

MEMORANDO

 Nono dia do segundo mês de dois mil e vinte e cinco.

Este bilhete é só para ti, para ires lendo até que o temporal acabe e regresse a primavera. No dia de nossa senhora das candeias o céu não chorou, por isso o inverno está para vir. Resigna-te ao teu conforto, dá graças pelo teto, pela água, pelo pão e pela companhia. Abraça as dores e cuida-te como a um recém nascido, até que elas passem, se ocultem ao som das gargalhadas, da música que dá na rádio, do silêncio. Ai o som do silêncio, que aflição que ele dá! Desliga as notícias do dia ,vai sentir a chuva lá fora e enfrenta o vento de frente. Dá-te ao luxo de ser em vez de parecer, seja com um batom colorido, uns sapatos velhos ou o cabelo por pentear. Senta-te com quem te quer bem e, como li em tempos, com quem defende o teu nome na tua ausência.
Fui ao cinema ver a Eunice Paiva depois de ter estado a ver as mulheres da resistência portuguesa ao mesmo tempo que escrevia sobre a minha mãe. Caramba, andamos para trás e temos tantos meios de seguir em frente, de combater a censura das bocas pequenas à maior. Como é que chegamos aqui a urrar pelos que sempre nos prejudicaram? Como é que defendemos abusadores de todas as integridades depois de tudo o que temos passado como humanos, seja qual for o credo, a raça, a orientação sexual, o partido político, ou nada?
Será o conforto que acomoda o pensamento? Já não tens que escolher o filme que gostas de ver, a música que gostas de ouvir, o algoritmo escolhe por ti, sabias?
Já experimentaste ler o mesmo livro várias vezes? Sabes que a cada vez vão aparecer novas evidências? Há um pôr de sol igual? Não, pois não? Nem tempestades idênticas, nem dias de sol semelhantes. Nem nós somos iguais todos os dias mas a essência é imutável. Por isso temos sempre a sensação que somos demasiado jovens ou demasiado velhos para cada desafio que nos é apresentado. Experimenta o caminho do meio, saindo num apeadeiro e não numa estação e percorre sem mapa nem navegador virtual até um destino desconhecido. Foi difícil? Eventualmente! E então? Se sorrires vão pensar que é fácil, se chorares que és lamechas. Noticia de última hora-avaliações secundárias não interessam. É censura em ponto pequeno e por isso deixamos que a grande entre.
Como dizíamos no meu tempo de liceu- caga nisso!

Elsa Bettencourt

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

ADÍLIA LOPES


 



                                                                           1960 - 2024

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

DEZEMBRO FELIZ


 

Neste dia primeiro do décimo segundo mês de dois mil e vinte e quatro escrevo já tarde. Está um frio bom lá fora e tenho as estrelas limpídas a brilhar sobre a cabeça. Este ano, cada dia dele, foi de muita gratidão e aprendizagem, talvez por ter sido um ano de muita dor, muita terapia, muito amor, silêncio encoberto por gargalhadas sonoras. Nenhuma das minhas melhores amigas, nem um dos meus melhores amigos,está aqui,nem o meu filho, nem as minhas filhas, nem a minha neta. Sou filha única e órfã de pai e mãe há demasiados anos para sequer contar com um abraço que conforte qualquer queda. A segurança do vosso amor é que me desenha cada passada e me ampara todas as quedas. A lembrança dos vossos abraços é como o calor destas estrelas que sobre mim brilham tão límpidas no céu de veludo escuro.
Brindo aos amores passados com um chá a ferver entre as mãos e novamente agradeço, mesmo aos que me magoaram, porque aos que eu magoei já lhes pedi perdão. Ganhei músculo contra déspotas com pelugem fofinha e instagramável.
Sou tão voluntariosa como apaixonada e isso leva-me a cuidados redobrados com esta menina que dança debaixo da pele de senhora de meia idade. Trago comigo os ensinamentos de casa,da escola, da praia e das tempestades,dos voos, duma vida cheia de tudo e dos livros,filmes e músicas que vou devorando ao longo dos anos que são bastante inferiores ao número de hemáceas que compõem a minha corrente sanguínea mas não renováveis a cada cento e vinte dias.
Aprendi, finalmente, a não me deixar para trás, nunca. No fim do dia, antes de me deitar, depois duma caminhada noturna com os animais que fazem parte deste lugar, recolho-me da vida como é e embrenho-me naquilo que também me compete. As linhas diárias de escrita, os lençóis aquecidos pelo ferro de engomar, as portadas das janelas fechadas, a máquina de roupa pronta a rodar, a cama do lobo esticada ao lado da minha, as plantas regadas, a louça a pensar se vai ser lavada, as panelas ainda quentes dos sabores partilhados. Sou pessoa de muitas pessoas, sou uma solitária que adora gente por cada característica que as compõe.
Amanheci ainda antes do céu abrir neste dia terceiro do último mês. Há nuvens com pinceladas de cor de laranja sobre as árvores na quadrícula esquerda da janela da cozinha. Está frio e o café acorda-me docemente enquanto a visão de mais um dia bom alegra-me o acordar. A cada dia novos amigos aparecem e antigos amigos reaparecem. Preparo as botas e a camisola mais quente. As tarefas aqui são como o trânsito na segunda circular, lentas. De resto em nada se comparam.
Dezembro feliz!

Elsa Bettencourt

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

NO CAOS DA CALMA...A ENTRADA

 Décimo oitavo dia do nono mês de dois mil e vinte e quatro.

É a ideia de mim a amar-te que ainda amo. Podias ter morrido ontem que me seria igual. Começaste a morrer no primeiro minuto em que me espancaste com as palavras de moribundo intoxicado pela poeiras castanhas do teu deserto emocional.
É a ideia de mim a amar que amo. Podias morrer num dia qualquer que eu já tinha enterrado a ideia de ti, daquilo que pensei que eras e daquilo que tu me fizeste pensar que era. Somente uma forma de chegares aos teus propósitos como num escadote, num caixote e eu Quixote, eternamente Quixote, a debelar moinhos de vento, sendo Dulcineia, Rocinante e Sancho, a iluminar-me nas noites pardas com a estrela menor como archote. É a ideia de amar acima de todas as coisas, a mim, a ti, ou a quem for, que alimenta a vida que quero simples,escorreita e límpida, sem rancores nem amargores pela constatação da existência de verdadeiros estupores como tu e os que te assemelham, sem chispa nem centelha, sugadores de esperança e bem aventurança, disseminadores de todos os vícios e dores.
É a ideia do amor que eu amo, é ele que me cura, acorda e adormece, me faz sonhar, questionar, acreditar e continuar.
É ele que eu vejo em todas as coisas que me rodeiam, na grandeza das almas que me cercam, no olhar de cada filha, do meu filho, da minha neta, duma amiga, dum amigo, do meu fiel escudeiro peludo de olhos de veludo, da égua que me abraça a cada chegada, das gatas que me seguem como a uma semelhante.
É a ideia de ser assim que me faz cultivar cada lugar de mim, reinventar cada queda e ser a minha própria escada, transformar em tudo o que antes era nada, ser no caos da calma a entrada.
Elsa Bettencourt

terça-feira, 9 de julho de 2024

PORQUE É VERÃO


 No nono dia do sétimo mês de dois mil e vinte e quatro entra o vento pelo balcão adentro e a folhagem das árvores dança em frente. A Dora trota feliz entre o jardim e o pomar, parando só para pôr o focinho no ar que traz o cheiro equino da vizinhança mais ao lado. Serão póneis, serão cavalos ? São amigos certamente, que relincham à presença dela, à visão dos flancos e das curvas delineados pelo sol nascente.

É verão e a natureza das coisas simples a despertar os sentidos da estação mais quente.
Os gatos dormitam pela casa e quase se incomodam com a passagem abrupta de vassouras e aspiradores. Resmungam e passam para o lado de fora a tremer os maxilares para a próxima presa enquanto eu caço do lado de dentro as palavras e as poeiras, as teias esquecidas e a contas perdidas, bilhetes e cartas de amor escritas antes de eu nascer.
Tudo isto vai da grande realidade onde sou até às pequenas onde vou. O meu núcleo vai-se abrindo a cada dia às funções repetidas e às por fazer, como a ondulação gerada pela pedra que atiramos ao lago. Há um efeito para cada pequeno feito e é assim que vou andando, já que perguntam e dizem que têm saudades, hoje melhor do que ontem e menos bem do que amanhã.
Tocou o despertador e esta tarefa terminou. Os gatos voltaram aos seus lugares, a Dora aguarda a taça de cereais e o Lucky dorme profundamente atrás de mim. Os pássaros aumentaram a sinfonia anunciando um dia melhor.

Elsa Bettencourt

sábado, 1 de junho de 2024

NÃO PISEM A RELVA

 Tudo o que escrevi aqui, há não sei quantos anos, não passou de vozearia, palavras ocas, ruído, tanto ruído incomodativo e inútil, cheio de pompa, presunção e ilusão. Não soube preservar o silêncio, guardar o recato, conservar o bem mais precioso de todos, abster-me de fazer juízos, de emitir opiniões, de construir estruturas de ideias falsas, proclamações que a ninguém interessam, nem sequer a mim mesmo. Por isso, adeus, passem bem, sejam felizes, mantenham-se quentes e em segurança. Eu vou andando. Ou não.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

PAUL AUSTER


 



                                                                           1947 - 2024

segunda-feira, 15 de abril de 2024

NÃO VÁS PARA AÍ


 


No princípio tudo é fascínio e aventura, tudo é um universo para desbravar, um espaço à espera de conquista. Não há dores nem receios, hesita-se pouco. Descemos vagarosamente os degraus de pedra e entramos suavemente na maré. Depois vamos ganhando mais confiança e arriscamos um mergulho. Primeiro nos degraus mais baixos e pouco a pouco subindo até lá acima. Contemplando o horizonte introduzimos a vertigem do salto. Em poucas tentativas já somos amigos do mar e passamos horas a brincar com ele, nadando nas suas águas, mergulhando, percorrendo os caminhos de um mundo diferente do nosso. Às vezes uma voz fraca faz-se ouvir ao longe.

 

          Não vás para aí

 

E nós vamos e continuamos a ir sem ligar nenhuma a avisos longínquos. Ficamos na água até bater o queixo e voltamos para casa ao fim do dia. Nesse tempo não há preocupações nem vertigens, não há medo nem frio.

 

Depois qualquer coisa vai acontecendo com o passar do tempo. O passo desacelera, o corpo aumenta de peso, a paciência muda de capacidade. Continua a vontade de saltar para dentro de água mas de uma forma mais moderada. Uma vez por outra a vontade de nadar mas o frio e as dores começam a pesar no corpo. Já não apetece lá ficar tanto tempo, há muitas coisas para fazer. E uma voz soa lá longe.

    Não vás para aí

E em certos dias não vamos. Preferimos passear ao fim da tarde pelo passeio marginal. Continuamos amigos, continuamos a passar tempo juntos mas desta vez de um forma mais ponderada. Em vez de nadar todos os dias começamos a apreciar o diálogo mais calmo, o passeio, a contemplação do outro mundo ao lado do nosso.

 

   Não vás para aí

 

E num instante os anos passam e a vontade que era toda começa a encolher. As pernas, o fôlego e o passar dos dias encolhem com ela. Estabelecem limites, impõem disposições, ditam a severidade das regras. Voltamos ao mar, voltamos sempre lá para visitar um amigo mas precisamos de uma sombra, de um lugar para nos sentarmos. E ficamos a ver os outros mais novos que caminham pela marginal ou os outros ainda mais novos que mergulham despreocupados. Já não é uma voz a dizer

 

   Não vás para aí

 

É outra coisa que sai cá de dentro, outra coisa que se veste em forma de aviso, autoritária.

 

  Não podes ir para aí

 

De maneira que nos deixamos por ali ficar sentados a sentir a brisa ao fim da tarde, os cheiros do mar e continuamos a nossa conversa com um velho amigo. O Tempo não termina, encolhe como os nossos corpos, vai-se ajeitando como um gato antes de se deitar dando voltas e voltas. Tudo fica mais pequeno até desaparecer. E de repente damos conta que estávamos dentro de um filme, ou de uma máquina que filmava e que aos poucos a lente vai-nos absorvendo até aos limites do enquadramento. Depois somos levados até nos tornarmos parte da maquinaria que produz as imagens e que faz correr toda a acção. E ao longe voltará a fazer-se ouvir uma voz

 

   Não vás para aí

 

A mesma que sempre ouvimos e à qual nunca obedecemos. Nessa altura percebemos. Não era do mar que ela estava a falar.

 

   Não vás para aí

 

E nós vamos na mesma, como sempre fomos, sem lhe dar ouvidos…

 

Artur

 

(Imagem de Luis Pereira)